Autora: Maura Roberti. Procuradora em SP e professora.
“Crianças Ladronas”, este é o título que dá início ao livro
“Capitães da Areia”, do Mestre da narrativa baseada em temas regionais. A realidade social e cultural da
Bahia, levou Jorge Amado a coletar, neste título, algumas reportagens
publicadas em jornais daquele Estado, as quais serviram de alicerce para o
livro acima mencionado.
Sua obra, das mais significativas
da moderna ficção brasileira, tem como fundamento o quadro regional, mostra na
paisagem do sul da Bahia o drama da infância abandonada, bem como os conflitos
e injustiças sociais ligados aos desequilíbrios econômicos.
O caótico quadro por ele traçado
nos idos de 1937, infelizmente não mudou, mesmo no início de milênio.
Este tema é objeto de numerosas
análises sociológicas, que nos trazem informações no sentido de que o caminho
que leva à marginalidade não é traçado por uma categoria particular de crianças
e adolescentes, mas sim por todo um conjunto de problemas estreitamente
relacionados com condições de habitação subumanas, crises entre os pais, um
sentimento generalizado de alienação e de isolamento no seio da família, na
escola, e, acima de tudo, pela discriminação feita pelas pessoas do seu meio
que representam a sociedade dita "normal".
Na realidade, centenas de milhares
de crianças e adolescentes rebelam-se contra as "pessoas
respeitáveis" somente por decepção, porque os adultos não souberam
dar-lhes a imagem de uma comunidade humana onde eles tivessem seu lugar, à qual
gostariam de se integrar, onde encontrassem compreensão, segurança e calor.
Na maioria das vezes as crianças
refugiam-se na marginalidade, em conseqüência do fracasso da geração dos seus
pais, fugindo, desta forma, das opressões de todos os gêneros, protegendo-se da
despersonalização em que a sociedade os obriga a se amoldar.
Como resposta à irresponsabilidade
e desumanidade da sociedade, que tem seus interesses voltados para o
desenvolvimento e ignora as vítimas de uma política que não leva em conta o
social e, sobretudo, a criança, esta reunindo-se em bandos, tenta criar,
clandestinamente, um mundo irreal que responda às suas necessidades mais
profundas.
Sem dúvida, o mundo já deveria ter
eliminado as inúmeras formas de violações a que as crianças são submetidas,
impedindo assim que estas se transformem na escória da sociedade. Mas isso
ainda não aconteceu.
Quando assistimos a algum programa
de televisão sobre violência, é inevitável que a referência principal seja a
roubos a mão armada, assassinatos e estupros, muitos deles praticados por
menores infratores. Mas, todas as reportagens referem-se aos atos dos
indivíduos isolados que amedrontam os membros da comunidade e suas famílias.
Diante disso, a sociedade se sente
incomodada e atenta, pois estão em risco a propriedade, a segurança e o
bem-estar. Então clama por aparato policial, segurança nas ruas e repressão ao
marginal.
Porém, sem considerar o fato do
aumento real desse tipo de criminalidade, é preciso abordar o fenômeno da
violência a partir de uma visão mais abrangente, pois nem sempre as piores
formas de violência são, de fato, estampadas nas telas da televisão.
Toda vez que deixamos de fazer
determinadas ações cujo cumprimento seria necessário para evitar sofrimentos,
estamos diante da violência passiva.
Ninguém exige providências
efetivas do Estado para que cesse de alimentar, com o descaso e a inoperância,
o celeiro que armazena o número crescente de brasileiros miseráveis em todos os
sentidos.
Na
raiz desses problemas encontramos a violência da desigualdade social decorrente
da injusta repartição das tarefas e dos privilégios que levam ao irregular
aproveitamento dos bens produzidos pela comunidade.
O fato de crianças permanecerem
fora dos bancos escolares, cerceadas de direitos que lhe são inerentes e
constitucionalmente consagrados, também configura uma violência que não está
disseminada nas telas da televisão, sendo certo que esta forma de violência é
tão cruel e abominável quanto à violência sangrenta.
Acima de tudo temos uma espécie de
violência que ninguém se atreve a questionar que é a violência institucional.
O Estado, como sociedade
politicamente organizada, preocupado em não deixar nenhuma sombra, por menor
que seja, sobre a ordem estabelecida, imputa, sistematicamente, os problemas
sociais aos próprios infratores que ele deixa ao desalento e, por isso,
inadaptados.
O imenso número de crianças
abandonadas ou carentes, leva a distorções difíceis de reverter. Como passam a
ser infratoras, são recolhidas às instituições, onde, além de serem submetidas
a maus-tratos, se aperfeiçoam nas “artes” do crime.
A violência tende a progredir em
sociedades cujos homens permanecem pouco criativos, que perderam o sentido da
existência e a esperança em dias melhores. A violência também se expande onde
não existe cidadania.
Para Sartre, insígne dramaturgo e filósofo francês, imbuído de
ensinamentos filosóficos afirma que "o homem é responsável por aquilo que
é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de por todo homem no
domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua
existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não
queremos dizer que o homem é responsável por sua restrita individualidade, mas
que é responsável por todos os homens”[1].
A indiferença dos políticos,
muitas vezes pressionados pela opinião pública, vem a caracterizar uma
tendência generalizada a recalcar, a não querer pensar no problema existente.
Plageando Marc Ancel[2],
ao mencionar Prins, podemos afirmar
que é imprescindível "uma maior proteção dos pobres, dos humildes e dos
indigentes que a Sociedade atual deixa indefesos, abandonando-os aos criminosos
impedernidos, quando não os predispõe para que eles próprios se tornem
criminosos".
Analisar a marginalidade infantil
sob a ótica dos direitos da criança, não apenas oferece novos caminhos para a
compreensão do problema do menor infrator, mas também agrega uma nova energia e
um novo direcionamento ao movimento em favor de sua diminuição.
Não é possível formar cidadãos,
nem falar em direitos humanos sem antes atentarmos para o universo imenso de
pessoas que hoje estão destituídas até mesmo dos direitos básicos de
humanidade.
O que verificamos hodiernamente é
que atacam-se os efeitos e não as causas.
A problemática do menor infrator
merece uma reflexão profunda sobre diversos conceitos humanísticos que servem
de base à aspirações do homem na construção de um mundo melhor.
Amparar a família brasileira, a
partir da mais pobre, socorrendo, em primeiro, aquelas desunidas e
desintegradas e procurando trazer ao seu seio os filhos menores distribuídos
pelas ruas certamente é uma solução, não utópica, para combatermos a causa
provocadora do menor infrator.
Ante a impossibilidade de
manter-se o menor no seio da família, ainda que em entidades destinadas a
agasalhar menores abandonados, um casal “substitutivo” de seus pais deve
existir nesta instituição. A desorientação surge por não ter-se parâmetro de um
ideal. O menor sozinho, sem dúvida nenhuma fica desorientado iniciando, desta
forma, um lamentável processo de marginalização, pelo abandono.
Renato Talli[3],
abordando o problema da infância desvalida e do menor carente, faz menção a uma
frase com a qual faço questão de encerrar este trabalho, visto que ela
representa, em poucas palavras, a forma como podemos alcançar uma sociedade
ideal. Diz esse notável Desembargador que “Todos
nós somos um pouco culpados” – referindo-se a iníqua desigualdade de
tratamento dado ao menor desamparado – “O
passado é irrecuperável, o presente é que vale e o futuro será o que tivermos a
coragem e o destemor de fazer hoje sem procrastinações.
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[2]
Ancel, Marc. A Nova Defesa Social: um
movimento de política criminal humanista.
[3]
Talli, Renato Laércio. Reumanização do
social: questão de consciência. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,
1996.
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