Felipe Caldeira. Professor (RJ)
O Direito é uma ciência social
aplicada e, como tal, deve acompanhar os movimentos e as transformações
da sociedade. Por tal razão, o desenvolvimento das novas tecnologias,
impulsionada pela globalização econômica[1], passou a influenciar a formulação do Direito Penal contemporâneo, daí falar-se, por exemplo, na sua expansão[2].
Outro fenômeno que merece atenção pela sociedade brasileira é a ineficácia da execução penal. Na verdade, da invalidade na aplicação da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal – LEP) porque unconstitutional on its enforcement[3], tendo em vista não atender ao seu objetivo de promover a ressocialização do acusado de forma a permitir o seu convício em sociedade (artigo 1º, da LEP)[4], cujo fundamento constitucional reside no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CRFB/88). Porém, não é o objetivo discutir os defeitos da execução penal no Brasil.
Resta, portanto, que são estas as diretrizes a serem observadas pelos Poderes estatais quando da execução de uma pena: (i) não pode ignorar os avanços tecnológicos; e (ii) deve, sempre, ter por meta a preservação dos direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos. Neste sentido, o monitoramento eletrônico de presos, visto como substitutivo da prisão[5], tanto na fase pré-processual como processual, funcionará como um importante instrumento de promoção de tais valores constitucional e legal, bem como permitirá o primeiro passo à inserção das novas tecnologias ao Direito Penal.
Os modelos adotados pelos diversos ordenamentos jurídicos (Estados Unidos, Inglaterra, Suécia, França) nos quais o monitoramento eletrônico de presos se aplica, por exemplo, na fase pré-processual como substitutivo da prisão provisória, caso adotados pelo Brasil, estariam em perfeita harmonia com a CRFB/88 porque (i) funcionaria como um substituto a prisão; e (ii) ensejaria a conseqüente promoção da dignidade da pessoa humana ao afastar o acusado do cárcere e aproximá-lo da sociedade.
Procurando equacionar tais diretrizes (inserção do desenvolvimento tecnológico ao Direito Penal e tentativa de superação da ineficácia da execução penal), o Poder Legislativo editou a Lei 12.258/10, e inseriu na ordem jurídica brasileira o monitoramento eletrônico de “presos” – na verdade, de “soltos” como se perceberá, daí assistir razão a Eduardo Viana Portela Neves quando se refere ao tema como monitoramento eletrônico de condenados[6], pelo menos no que se refere ao modelo adotado pelo Brasil – como um instrumento da execução penal.
De fato, se observadas as vantagens de diversas ordens oferecidas pela aplicação desta nova tecnologia a execução penal, especialmente aquelas que promovam a finalidade da execução penal e preserve a dignidade da pessoa humana tais como a redução da população carcerária e dos custos do encarceramento[7], decerto que não haveria qualquer questionamento a ser formulado. Entretanto, o modelo adotado pelo Brasil, conforme se perceberá, não atende a esta proposta.
A Lei 12.258/10 inseriu a Lei 7.210/84 a possibilidade de monitoramento eletrônico de “soltos” quando, por determinação do magistrado (artigo 122, parágrafo único, da LEP), de dará em duas hipóteses: (i) o condenado for beneficiado pela saída temporária no regime semiaberto (artigo 146-B, inciso II, da LEP); ou quando (ii) o condenado estiver sob regime domiciliar (artigo 146-B, inciso IV, da LEP). Sua aplicação será, portanto, restrita a fase processual-executiva, ao contrário da grande maioria das ordens jurídico-penais estrangeiras que aplicam o sistema na fase pré-processual e processual-cognitiva.
A conclusão lógica e necessária é a de que o modelo adotado pelo Brasil não funciona como substitutivo da prisão porque será aplicado em duas hipóteses nas quais não existe o encarceramento, razão pela qual se trata de um verdadeiro monitoramento de “soltos” e não de “presos”. O seu efeito utilitarista implicará, inclusive, na perda de todas as vantagens da utilização desta nova tecnologia, ensejando, por outro lado, o aumento do custo com a execução penal do condenado a ser submetido a este tipo de monitoramento porque não se trata de um instrumento alternativo, e sim cumulativo (artigo 122, parágrafo único, da LEP).
Deixando de lado este argumento, sob o ponto de vista legal e constitucional, o problema se torna ainda mais grave.
Conforme já se constatou, a finalidade da execução penal encontra embasamento constitucional no princípio (na verdade, um postulado-normativo afirmativo) da dignidade da pessoa humana. Com efeito, toda e qualquer alteração na Lei 7.210/84 deve guardar conformidade com esta afirmação. Ocorre que a Lei 12.258/10, no modelo adotado, não encontra harmonia constitucional porque (i) não irá impulsionar a promoção da ressocialização do condenado, senão funcionar como mais um instrumento de seu monitoramento; e (ii) consequentemente não densificará o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que perderá o sentido de substituição da prisão.
Diante de tais argumentos, resta ao intérprete, objetivando preservar a norma jurídica, realizar a sua conformação constitucional, sob pena de seu afastamento da ordem jurídica. Nesta ordem de idéias e pelos argumentos já expostos, não parece haver interpretação possível a preservação das alterações da Lei 7.210/84 promovidas pela Lei 12.258/10, uma vez que com o modelo adotado (i) não será possível atender a finalidade da execução penal; e (ii) não será atendido o princípio da dignidade da pessoa humana. O modelo representa, ainda, mais uma forma de controle do cidadão pelo Estado, o que ofende a própria essência do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CRFB/88) ao aproximá-lo do Estado do Terror[8].
Nesta linha, a Lei 12.258/10 é inconstitucional por ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito.
[1] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil- aspectos jurídicos e criminológicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 255-259.
[2] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal - aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; MIR PUIG, Santiago. Constitución, Derecho Penal y Globalización. In: Política criminal y reforma penal. Vítor Gómez Martín (org.). Edisofer s.l.: Madrid, 2007, p. 3-15; QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 3ª ed., rev. atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 110.
[3]
Sobre esta espécie de inconstitucionalidade, leia-se o caso “Ayotte v.
Planned Parenthood of Northern New Eng” julgado pela Suprema Corte dos
Estados Unidos. Disponível em:
<http://www.supremecourt.gov/opinions/05pdf/04-1144.pdf>. Acesso
em: 8 jun. 2010.
[4]
Conforme assinala Claus Roxin, este também é o objetivo da Lei de
Execução Penal alemã. ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal.
Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey,
2007, p. 18. No original: Strafvollzugsgesetz – StVollzG § 2.º Im
Vollzug der Freiheitsstrafe soll der Gefangene fähig werden, künftig in
sozialer Verantwortung ein Leben ohne Straftaten zu führen
(Vollzugsziel). Tradução livre: A execução penal deve possibilitar os condenados a convivência social com responsabilidade e sem a prática de crimes (meta da execução).
[5]JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. A crise do sistema penitenciário: a experiência da vigilância eletrônica. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, a. 14, n. 170, p. 2-3, jan. 2007; NEVES, Eduardo Viana Portela. Monitoramento eletrônico de condenados. Avanço ou retrocesso?.
Disponível em:
<http://profeduardoviana.wordpress.com/2010/06/01/monitoramento-eletronico-de-condenados-avanco-ou-retrocesso/>. Acesso
em: 8 jun. 2010.
[6] Ibid.
[7] Sobre as vantagens do sistema: CÉRE, Jean-Paul. La surveillance électronique : une réelle innovation dans le procès pénal?. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v. 7, n. 8, p. 105-122, jan./jun. 2006.
[8] HASSEMER, Winfried. Darf es Straftaten geben, die ein strafrechtliches Rechtsgun nicht in Mitleidenschafz ziehen? In: Hefendehl; von Hirsch; Wohlers editores. Die Rechtsgutstheorie, 2003, p. 57.
[1] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil- aspectos jurídicos e criminológicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 255-259.
[2] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal - aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; MIR PUIG, Santiago. Constitución, Derecho Penal y Globalización. In: Política criminal y reforma penal. Vítor Gómez Martín (org.). Edisofer s.l.: Madrid, 2007, p. 3-15; QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 3ª ed., rev. atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 110.
[3]
Sobre esta espécie de inconstitucionalidade, leia-se o caso “Ayotte v.
Planned Parenthood of Northern New Eng” julgado pela Suprema Corte dos
Estados Unidos. Disponível em:
<http://www.supremecourt.gov/opinions/05pdf/04-1144.pdf>. Acesso
em: 8 jun. 2010.
[4]
Conforme assinala Claus Roxin, este também é o objetivo da Lei de
Execução Penal alemã. ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal.
Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey,
2007, p. 18. No original: Strafvollzugsgesetz – StVollzG § 2.º Im
Vollzug der Freiheitsstrafe soll der Gefangene fähig werden, künftig in
sozialer Verantwortung ein Leben ohne Straftaten zu führen
(Vollzugsziel). Tradução livre: A execução penal deve possibilitar os condenados a convivência social com responsabilidade e sem a prática de crimes (meta da execução).
[5]JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. A crise do sistema penitenciário: a experiência da vigilância eletrônica. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, a. 14, n. 170, p. 2-3, jan. 2007; NEVES, Eduardo Viana Portela. Monitoramento eletrônico de condenados. Avanço ou retrocesso?.
Disponível em:
<http://profeduardoviana.wordpress.com/2010/06/01/monitoramento-eletronico-de-condenados-avanco-ou-retrocesso/>. Acesso
em: 8 jun. 2010.
[6] Ibid.
[7] Sobre as vantagens do sistema: CÉRE, Jean-Paul. La surveillance électronique : une réelle innovation dans le procès pénal?. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v. 7, n. 8, p. 105-122, jan./jun. 2006.
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