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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

ENTREVISTA CONCEDIDA PELO FILÓSOFO F. NIETZSCHE

Autor: Paulo de Souza Queiroz. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP.

1)Apesar de não ter se dedicado especificamente ao direito, o direito não é um tema estranho à sua filosofia…
NIETZSCHE: Certamente. O que se poderia chamar de a minha filosofia do direito está em grande parte na minha genealogia da moral. De todo modo, como para mim o direito é uma continuação da moral por outros meios, e como a moral é um dos meus temas mais frequentes, penso que parte importante da minha filosofia lhe é aplicável.

2)O que o senhor entende por direito?
NIETZSCHE: Parece-me que o que escrevi sobre a verdade é perfeitamente aplicável ao direito. Eis o que escrevi (fazendo as adaptações necessárias) num pequeno ensaio (verdade e mentira): “O que é, pois, o direito? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: o direito é uma ilusão da qual se esqueceu que ele assim o é”. Ou, se preferir, eu poderia me valer também do que escrevi sobre a moral para dizer: “Minha sentença principal: não há nenhum fenômeno jurídico, mas, antes, apenas uma interpretação jurídica desses fenômenos. Essa interpretação é, ela própria, de origem extrajurídica”.
Enfim, o que os senhores pretendem como sendo o Direito é apenas uma palavra para a vontade de poder, de sorte que quem tem o poder cria o direito; quem não o tem o sofre. Afinal, só é direito o que o poder reconhece como tal. Basta pensá-lo e contextualizá-lo historicamente.

3)Mas isso não é uma excessiva relativização? Se for assim, então tudo pode ser direito (matar, roubar, estuprar etc.).
NIETZSCHE: Mas tudo isso é e sempre foi praticado em nome do direito, de ontem e de hoje. O que é, afinal, o aborto legal senão uma autorização para matar um ser indefeso? O que é a pena de morte senão um homicídio? O que é a legítima defesa senão uma legitimação para ferir, matar etc.? E o que é o agente infiltrado senão uma autorização para cometer toda sorte de crimes? O que são as penas e medidas de segurança senão seqüestros legais?
A minha resposta é, pois, sim! Matar, roubar, estuprar pode ser conforme o direito (ou contra o direito), inclusive porque o que seja “matar”, “roubar”, “estuprar” e as possíveis formas de legitimação dessas ações não estão previamente dadas, apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos. Kelsen (in teoria pura) tinha razão, portanto, quando dizia que o absurdo pode ser direito.

Enfim, é o poder (um conjunto de relações histórica e permanentemente em construção) que, em última análise, cria e extingue estados, promulga leis e revoga constituições, institui exércitos e parlamentos, declara a guerra e a paz, forja deuses e demônios, distingue mito e realidade, saber e ignorância, bem e mal, verdade e mentira, direito e torto.
4)Se o senhor estiver correto, então uma sociedade de criminosos também teria direito?

NIETZSCHE: Sem dúvida, embora não seja o direito oficial ou o tipo de direito que o senhor gostaria de ver instituído/reconhecido, possivelmente. Se o senhor tiver alguma dúvida quanto a isso, consulte, a propósito, o estatuto do PCC (Primeiro Comando da Capital), que tem como princípios declarados: “1. Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido. 2. A luta pela liberdade, justiça e paz. 3. A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões.” Diz ainda (9) que “o partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas, sim, a verdade, a fidelidade, a hombridade, a solidariedade e o interesse como o bem de todos, porque somos um por todos e todos por um”.

Repito que o direito é um conjunto móvel de metáforas e metonímias produzidas pelas relações de poder; ou, como diz Pierre Bourdieu (in o poder simbólico), “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.

E mais: não seria direito o direito antigo pelo só fato de admitir a escravidão e semelhantes como instituições jurídicas? O direito iraniano (e de outros tantos países) não teria o status de direito pelo só fato de, entre outras coisas, criminalizar o homossexualismo, punir o adultério com pena de morte etc.? Seria possível pensar o direito para além do tempo e do espaço e das relações de poder que o constituem? Na verdade, aquilo que designamos por direito pode ser eventualmente tão ou mais violento ou cruel quanto o que se pretende combater por meio dele (as ilegalidades).

5)Alguns autores defendem atualmente que, apesar da vagueza da linguagem, dos prejuízos do intérprete etc., existiria a única resposta correta ou, ao menos, a resposta correta. Como o senhor vê isso?
NIETZSCHE: lia há pouco o império do direito do Sr. Ronald Dworkin. O que temos ali? O juiz Hércules é uma alegoria (dela também me vali no meu Zaratustra) por meio da qual o Sr. Dworkin expõe suas próprias ideias sobre o que é o direito e o que ele entende por resposta correta. Hércules e Dworkin são, pois, uma só e mesma pessoa; logo, os limites de Hércules são os limites do homem Dworkin (limites morais, religiosos, jurídicos, filosóficos, políticos etc.).
E por recorrer (também) a uma fábula (a fábula do juiz perfeito) o autor, embora fundamente suas posições juridicamente, conclui fabulosamente (existe uma resposta correta e essa resposta é dada por um juiz fabuloso, o juiz Hércules, isto é, uma resposta dada pelo próprio Dworkin). Conclusão: a resposta correta proposta por Hércules é a resposta correta na perspectiva de Dworkin. Não é, obviamente, nem a única, nem a melhor, nem a mais correta, mas apenas isso: a resposta correta de Dworkin (na verdade, o que ele propõe me pareceu essencialmente um procedimento), inclusive porque a correção da resposta não é, a rigor, uma qualidade da resposta mesma, mas uma relação entre o intérprete e a resposta; logo, mudando o intérprete, muda, consequentemente, a resposta que se pretende por correta. Porque o que quer que possa ser pensado, por quem quer que possa ser pensado, como quer que seja pensado, sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e, pois, conduzir a resultados também diversos.
Finalmente, a adoção de um determinado procedimento (método etc.) não é garantia de uma mesma resposta, nem será (só por isso) necessariamente correta ou adequada. Se fosse, no futuro, os atuais juízes poderiam ser substituídos por sofisticados programas de computador; poderíamos, inclusive, em homenagem a Dworkin, chamá-los de Hércules. E mais: decisões tecnicamente corretas não são forçosamente decisões justas (e vice-versa).
Enfim, Dworkin parece não se dar conta de que “nossos valores são introduzidos nas coisas pela interpretação, que todo sentido é necessariamente sentido de relação e perspectiva, enfim, que todo sentido é vontade de poder” (in vontade de poder). A minha hipótese é a de que o próprio “in-divíduo” é multiplicidade. Exatamente por isso, tudo que entra na consciência como unidade já é imensamente complicado: temos sempre uma aparência de unidade (in vontade de poder). Naturalmente que Dworkin não ignora semelhante crítica (ele a chama de “ceticismo exterior”), mas a considera “tão verdadeira quanto inútil”.
O que Dworkin pretende é uma ingenuidade, portanto. Repito aqui o que disse no meu crepúsculo dos ídolos: Desconfio de todos os sistematizadores e os evito; a vontade de sistema é uma falta de retidão!  

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia, em 1844 e morreu em Weimar, em 1900.  A entrevista – fictícia, obviamente – foi imaginada a partir de seus textos (nem todos citados).

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